quinta-feira, 22 de novembro de 2012


PAPA BENTO XVI
AUDIÊNCIA GERAL
Sala Paulo VI
Quarta-feira, 14 de Novembro de 2012


O ano da fé. Os caminhos para chegar ao conhecimento de Deus
Queridos irmãos e irmãs!
Na quarta-feira passada reflectimos sobre o desejo de Deus que o ser humano leva no profundo de si mesmo. Hoje gostaria de continuar a aprofundar este aspecto, meditando brevemente convosco sobre alguns caminhos para chegar ao conhecimento de Deus. Contudo, gostaria de recordar que a iniciativa de Deus precede sempre todas as iniciativas do homem e, também no caminho rumo a Ele, é Ele em primeiro lugar quem nos ilumina, orienta e guia, respeitando sempre a nossa liberdade. E é sempre Ele quem nos faz entrar na sua intimidade, revelando-se e doando-nos a graça para poder acolher esta revelação na fé. Nunca esqueçamos a experiência de santo Agostinho: não somos nós que possuímos a Verdade depois de a termos procurado, mas é a Verdade que nos procura e nos possui.
Todavia, há caminhos que podem abrir o coração do homem ao conhecimento de Deus, sinais que conduzem para Deus. Certamente, com frequência corremos o risco de sermos ofuscados pelo cintilar da vida mundana, que nos torna menos capazes de percorrer tais caminhos ou de ler tais sinais. Contudo, Deus não se cansa de nos procurar, é fiel ao homem que criou e salvou, permanece próximo da nossa vida, porque nos ama. Esta é uma certeza que nos deve acompanhar todos os dias, mesmo se determinadas mentalidades difundidas dificultam que a Igreja e o cristão comuniquem a alegria do Evangelho a cada criatura e levem todos ao encontro com Jesus, único Salvador do mundo. Todavia, esta é a nossa missão, é a missão da Igreja e todos os crentes devem vivê-la jubilosamente, sentindo-a como própria, através de uma existência animada verdadeiramente pela fé, marcada pela caridade, pelo serviço a Deus e aos outros, e capaz de irradiar esperança. Esta missão resplandece sobretudo na santidade para a qual todos somos chamados.
Hoje — sabemo-lo — não faltam dificuldades e provações para a fé, frequentemente pouco compreendida, contestada e rejeitada. São Pedro dizia aos seus cristãos: «Estai sempre prontos a responder, para a vossa defesa, com doçura e respeito, a todo aquele que vos perguntar a razão da vossa esperança» (1 Pd 3, 15). No passado, no Ocidente, numa sociedade considerada cristã, a fé era o âmbito no qual ela se movia; a referência e a adesão a Deus eram, para a maioria das pessoas, parte da vida quotidiana. Ao contrário, era quem não acreditava que devia justificar a própria incredulidade. No nosso mundo a situação mudou e cada vez mais o crente deve ser capaz de dizer a razão da sua fé. O beato João Paulo II, na Encíclica Fides et ratio, realçava o modo como a fé é posta à prova também na época contemporânea, atravessada por formas súbtis e capciosas de ateísmo teórico e prático (cf. nn. 46-47). A partir do Iluminismo, a crítica à religião intensificou-se; a história foi marcada também pela presença de sistemas ateus, nos quais Deus era considerado uma mera projecção do ânimo humano, uma ilusão e o produto de uma sociedade já alterada por tantas alienações. Depois, o século passado conheceu um forte processo de secularismo, sob a bandeira da autonomia absoluta do homem, considerado como medida e artífice da realidade, mas empobrecido do seu ser criatura «à imagem e semelhança de Deus». No nosso tempo verificou-se um fenómeno particularmente perigoso para a fé: de facto, existe uma forma de ateísmo que definimos «prático», no qual não se negam as verdades da fé ou os ritos religiosos, mas simplesmente se consideram irrelevantes para a existência quotidiana, destacadas da vida, inúteis. Então, com frequência, cremos em Deus de modo superficial, e vivemos «como se Deus não existisse» (etsi Deus non daretur). Mas, no final este modo de viver resulta ainda mais destrutivo, porque leva à indiferença à fé e à questão de Deus.
Na realidade, o homem separado de Deus reduz-se a uma só dimensão, a horizontal, e precisamente este reducionismo é uma das causas fundamentais dos totalitarismos que tiveram consequências trágicas no século passado, assim como a crise de valores que vemos na realidade actual. Obscurecendo a referência a Deus obscureceu-se também o horizonte ético, abrindo espaço ao relativismo e confirmando-se uma concepção ambígua da liberdade que em vez de ser liberatória acaba por ligar o homem a ídolos. As tentações que Jesus enfrentou no deserto antes da sua missão pública, representam bem aqueles «ídolos» que fascinam o homem, quando não vai além de si mesmo. Se Deus perder a centralidade, o homem perde o seu justo lugar, e não encontra a sua colocação na criação, nas relações com os outros. Não se extinguiu o que a sabedoria antiga evoca com o mito de Prometeu: o homem pensa que pode tornar-se ele mesmo «deus», dono da vida e da morte.
Diante deste quadro, a Igreja, fiel ao mandato de Cristo, nunca cessa de afirmar a verdade sobre o homem e sobre o seu destino. O Concílio Vaticano II afirma sinteticamente que: «O aspecto mais sublime da dignidade humana encontra-se na vocação do homem à união com Deus. Começa com a existência o convite que Deus dirige ao homem para dialogar com Ele: se o homem existe é porque Deus o criou por amor e, por amor, não cessa de o conservar na existência; e o homem não vive plenamente segundo a verdade, se não reconhecer livremente este amor e não se entregar inteiramente ao seu criador» (Const. Gaudium et spes, 19).
Então, que respostas está a fé chamada a dar, com «doçura e respeito», ao ateísmo, ao cepticismo, à indiferença pela dimensão vertical, para que o homem do nosso tempo possa continuar a interrogar-se sobre a existência de Deus e a percorrer os caminhos que levam a Ele? Gostaria de mencionar alguns caminhos, que derivam tanto da reflexão natural, como da própria força da fé. Gostaria de os resumir muito sinteticamente em três palavras: o mundo, o homem e a fé.
A primeira: o mundo. Santo Agostinho, que na sua vida procurou a Verdade por muito tempo e foi arrebatado pela Verdade, escreveu uma página lindíssima e célebre, na qual disse: «Perscruta a beleza da terra, do mar, do ar rarefeito e onde quer que se expanda; perscruta a beleza do céu... e todas as realidades. Todas te responderão: olha para nós e vê como somos bonitas. A sua beleza é como um hino de louvor. Ora, estas criaturas tão bonitas, mas também mutáveis, quem as fez se não aquele que é a beleza inalterável? (Sermo 241, 2: PL 38, 1134). Penso que devemos recuperar e fazer recuperar ao homem de hoje a capacidade de contemplar a criação, a sua beleza, a sua estrutura. O mundo não é um magma amorfo, mas quanto mais o conhecemos e descobrimos os seus mecanismos maravilhosos, tanto mais vemos um desígnio, vemos que existe uma inteligência criadora. Albert Einstein disse que nas leis da natureza «se revela uma razão tão superior que toda a racionalidade do pensamento e dos ordenamentos humanos em comparação é um reflexo absolutamente insignificante» (O Mundo como eu o vejo). Portanto, um primeiro caminho que leva à descoberta de Deus é a contemplação da criação com um olhar atento.
A segunda palavra: o homem. É sempre de santo Agostinho a frase célebre com a qual diz que Deus é mais íntimo de mim de quanto eu o seja de mim mesmo (cf. Confissões III, 6, 11). A partir disto ele formulou o convite: «Não saias de ti mesmo, entra em ti mesmo: a verdade habita no homem interior» (De vera religione, 39, 72). Este é outro aspecto que corremos o risco de perder no mundo ruidoso e dispersivo no qual vivemos: a capacidade de reflectir, de meditar em profundidade e de detectar aquela sede de infinito que trazemos no íntimo, que nos impele a ir além e nos remete para Alguém que a possa satisfazer. O Catecismo da Igreja Católica afirma: «Com a sua abertura à verdade e à beleza, com o seu sentido do bem moral, com a sua liberdade e a voz da sua consciência, com a sua ânsia de infinito e de felicidade, o homem interroga-se sobre a existência de Deus» (n. 33).
A terceira palavra: a fé. Sobretudo na realidade do nosso tempo, não devemos esquecer que um caminho que leva ao conhecimento e ao encontro com Deus é a vida da fé. Quem crê está unido a Deus, está aberto à sua graça e à força da caridade. Assim a sua existência torna-se testemunho não de si mesmo, mas do Ressuscitado, e a sua fé não teme mostrar-se na vida quotidiana, está aberta ao diálogo que expressa profunda amizade pelo caminho de cada homem, e sabe dar esperança a necessidade de resgate, de felicidade e de futuro. De facto, a fé é encontro com Deus que fala e age na história e que converte a nossa vida diária, transformando a nossa mentalidade, juízos de valor, escolhas e acções concretas. Não é ilusão, fuga da realidade, refúgio cómodo, sentimentalismo, mas é participação de toda a vida e é anúncio do Evangelho, Boa Nova capaz de libertar o homem todo. Um cristão e uma comunidade que sejam activos e fiéis ao projecto de Deus que nos amou em primeiro lugar, constituem um caminho privilegiado para quantos vivem na indiferença e na dúvida acerca da sua existência e acção. Contudo, isto exige que o testemunho de fé de cada um se torne cada vez mais transparente, purificando a própria vida para que esteja em conformidade com Cristo. Hoje muitos têm uma concepção limitada da fé cristã porque a identificam com um mero sistema de crença e de valores e não com a verdade de um Deus que se revelou na história, desejoso de comunicar intimamente com o homem, numa relação de amor com ele. Na realidade, como fundamento de toda a doutrina e valor está o evento do encontro do homem com Deus em Jesus Cristo. O Cristianismo, antes de uma moral ou de uma ética, é o acontecimento do amor, é o acolhimento da pessoa de Jesus. Por isso o cristão e as comunidades cristãs antes de mais devem olhar e fazer olhar para Cristo, o verdadeiro Caminho que leva a Deus.


Fonte: http://www.vatican.va/holy_father/benedict_xvi/audiences/2012/documents/hf_ben-xvi_aud_20121114_po.html

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quarta-feira, 14 de novembro de 2012


PAPA BENTO XVI
AUDIÊNCIA GERAL
Praça de São Pedro
Quarta-feira, 7 de Novembro de 2012


O Ano da Fé. O desejo de Deus
Queridos irmãos e irmãs,
O caminho de reflexão que estamos a fazer juntos neste Ano da fé leva-nos hoje a meditar sobre um aspecto fascinante da experiência humana e cristã: o homem leva consigo um desejo misterioso de Deus. De uma forma significativa, o Catecismo da Igreja Católica inicia precisamente com a seguinte consideração: «Desejar a Deus é um sentimento inscrito no coração do homem, porque o homem foi criado por Deus e para Deus. Deus não cessa de atrair o homem a Si e só em Deus é que o homem encontra a verdade e a felicidade que não se cansa de procurar» (n. 27).
Esta afirmação, que também hoje em muitos contextos culturais parece ser totalmente partilhável, quase óbvia, poderia ao contrário parecer uma provocação no âmbito da cultura ocidental secularizada. Com efeito, muitos nossos contemporâneos poderiam objectar que não sentem minimamente tal desejo de Deus. Em amplos sectores da sociedade Ele já não é o esperado, o desejado, mas sim uma realidade que deixa indiferentes, face à qual nem sequer se deve fazer o esforço de se pronunciar. Na realidade, aquele que definimos «desejo de Deus» não desapareceu totalmente e apresenta-se ainda hoje, de muitas formas, ao coração do homem. O desejo humano tende sempre para determinados bens concretos, muitas vezes tudo menos que bens espirituais, e todavia encontra-se face à pergunta acerca do que é deveras «o» bem, e por conseguinte confronta-se com algo que é outra coisa e não é o eu, que o homem não pode construir, mas está chamado a reconhecer. O que pode deveras saciar o desejo do homem?
Na minha primeira encíclica, Deus caritas est, procurei analisar como este dinamismo se realiza na experiência do amor humano, experiência que na nossa época é mais facilmente sentida como momento de êxtase, de sair de si, como lugar no qual o homem sente que é atravessado por um desejo que o supera. Através do amor, o homem e a mulher experimentam de maneira nova, um graças ao outro, a grandeza e a beleza da vida e do real. Se o que experimento não é uma simples ilusão, se deveras quero o bem do outro como caminho também para o meu bem, então devo estar disposto a descentralizar-me, a pôr-me ao seu serviço, até à renúncia de mim mesmo. Por conseguinte, a resposta à questão acerca do sentido da experiência do amor passa através da purificação e da cura do querer, exigida pelo próprio bem que se quer ao outro. Devemos exercitar-nos, treinar-nos, até corrigir-nos, para que aquele bem possa deveras ser querido.
O êxtase inicial traduz-se assim em peregrinação, «êxodo permanente do eu fechado em si mesmo para a sua libertação no dom de si e, precisamente dessa forma, para o reencontro de si mesmo, mais ainda para a descoberta de Deus» (Enc. Deus caritas est, 6). Através deste caminho poderá progressivamente aprofundar-se para o homem o conhecimento daquele amor que inicialmente tinha experimentado. E assim vai-se delineando cada vez mais o mistério que ele representa: de facto, nem sequer a pessoa amada é capaz de saciar o desejo que se aninha no coração humano, aliás, quanto mais autêntico é o amor para o outro, tanto mais ele deixa abrir a interrogação acerca da sua origem e do seu destino, acerca da possibilidade que ele tem de durar para sempre. Por conseguinte, a experiência humana do amor tem em si um dinamismo que remete para além de si mesmo, é experiência de um bem que leva a sair de si e a encontrar-se diante do mistério que envolve toda a existência.
Poder-se-iam fazer também considerações análogas em relação a outras experiências humanas, tais como a amizade, a experiência do que é belo, o amor pelo conhecimento: cada bem experimentado pelo homem tende para o mistério que envolve o próprio homem; cada desejo que se apresenta ao coração humano faz-se eco de um desejo fundamental que nunca é plenamente saciado. Sem dúvida, deste desejo profundo, que esconde também algo de enigmático, não se pode chegar directamente à fé. O homem, em síntese, conhece bem o que não o sacia, mas não pode imaginar ou definir o que lhe faria experimentar aquela felicidade da qual leva no coração as saudades. Não se pode conhecer Deus só a partir do desejo do homem. Sob este ponto de vista permanece o mistério: o homem é indagador do Absoluto, um indagador que dá passos pequenos e incertos. E contudo, já a experiência do desejo, do «coração inquieto» como lhe chamava santo Agostinho, é bastante significativa. Ela confirma-nos que o homem é, no profundo, um ser religioso (cf. Catecismo da Igreja Católica, 28), um «mendigo de Deus». Podemos dizer com as palavras de Pascal: «O homem supera infinitamente o homem» (Pensamentos, ed. Chevalier 438; ed. Brunschvicg 434). Os olhos reconhecem os objectos quando eles estão iluminados pela luz. Eis por que o desejo de conhecer a própria luz, que faz brilhar as coisas do mundo e com elas acende o sentido da beleza.
Por conseguinte devemos considerar que seja possível também na nossa época, aparentemente tão insensível à dimensão transcendente, abrir um caminho rumo ao autêntico sentido religioso da vida, que mostra como o dom da fé não é absurdo, não é irracional. Seria de grande utilidade, para este fim, promover uma espécie de pedagogia do desejo, quer para o caminho de quem ainda não crê, quer para quem já recebeu o dom da fé. Uma pedagogia que inclui pelo menos dois aspectos. Em primeiro lugar, aprender ou voltar a aprender o gosto pelas alegrias autênticas da vida. Nem todas as satisfações produzem em nós o mesmo efeito: algumas deixam uma marca positiva, são capazes de pacificar o ânimo, tornam-nos mais activos e generosos. Outras, ao contrário, depois da luz inicial, parecem desiludir as expectativas que tinham suscitado e por vezes deixam atrás de si amargura, insatisfação ou um sentido de vazio. Educar desde a tenra idade para saborear as alegrias verdadeiras, em todos os âmbitos da existência — a família, a amizade, a solidariedade com quem sofre, a renúncia ao próprio eu para servir o próximo, o amor ao conhecimento, à arte, às belezas da natureza — tudo isto significa exercer o gosto interior e produzir anticorpos eficazes contra a banalização e o nivelamento hoje difundidos. Também os adultos precisam de redescobrir estas alegrias, de desejar realidades autênticas, purificando-se da mediocridade na qual podem encontrar-se envolvidos. Tornar-se-á então mais fácil deixar cair ou rejeitar tudo o que, mesmo se é aparentemente atraente, ao contrário se revela insípido, fonte de enebriamento e não de liberdade. E isto fará sobressair aquele desejo de Deus do qual estamos a falar.
Um segundo aspecto, que caminha a par com o precedente, é nunca se contentar com aquilo que se alcançou. Precisamente as alegrias mais verdadeiras são capazes de libertar em nós aquela inquietação sadia que leva a ser mais exigentes — querer um bem maior, mais profundo — e ao mesmo tempo sentir com clareza cada vez maior que nada de finito pode colmar o nosso coração. Assim aprenderemos a tender, desarmados, para aquele bem que não podemos construir ou obter com as nossas forças; a não nos deixarmos desencorajar pela fadiga ou pelos obstáculos que provêm do nosso pecado.
A este propósito não devemos esquecer contudo que o dinamismo do desejo está sempre aberto à redenção. Também quando ele se adentra por caminhos desviados, quando persegue paraísos artificiais e parece perder a capacidade de ansiar pelo bem verdadeiro. Também no abismo do pecado não se apaga no homem aquela centelha que lhe permite reconhecer o verdadeiro bem, saboreá-lo, e assim iniciar um percurso de subida, no qual Deus, com o dom da sua graça, nunca deixa faltar a sua ajuda. De resto, todos temos necessidade de percorrer um caminho de purificação e de cura do desejo. Somos peregrinos rumo à pátria celeste, rumo àquele bem pleno, eterno, que nada jamais nos poderá extirpar. Por conseguinte, não se trata de sufocar o desejo que se encontra no coração do homem, mas de o libertar, para que possa alcançar a sua verdadeira altura. Quando no desejo se abre a janela em direcção a Deus, isto já é sinal da presença da fé no ânimo, fé que é uma graça de Deus. Sempre santo Agostinho afirmava: «Com a expectativa, Deus alarga o nosso desejo, com o desejo alarga o ânimo e dilatando-o torna-o mais capaz» (Comentário à Primeira carta de João, 4, 6; pl 35, 2009).
Nesta peregrinação, sintamo-nos irmãos de todos os homens, companheiros de viagem também de quantos não crêem, de quem está à procura, de quem se deixa interrogar com sinceridade pelo dinamismo do próprio desejo de verdade e de bem. Rezemos, neste Ano da fé, para que Deus mostre o seu rosto a quantos o procuram com coração sincero. Obrigado.

Fonte: http://www.vatican.va/holy_father/benedict_xvi/audiences/2012/documents/hf_ben-xvi_aud_20121107_po.html

© Copyright 2012 - Libreria Editrice Vaticana

terça-feira, 6 de novembro de 2012


PAPA BENTO XVI
AUDIÊNCIA GERAL
Praça de São Pedro
Quarta-feira, 31 de Outubro de 2012


O Ano da Fé. A fé da Igreja
Queridos irmãos e irmãs,
Prosseguimos no nosso caminho de meditação sobre a fé católica. Na semana passada mostrei como a fé é um dom, porque é Deus que toma a iniciativa e vem até nós; e assim a fé é uma resposta com a qual nós O acolhemos como fundamento estável da nossa vida. É um dom que transforma a existência, porque nos faz entrar na mesma visão de Jesus, o qual age em nós e nos abre ao amor a Deus e aos outros.
Hoje gostaria de dar outro passo na nossa reflexão, partindo mais uma vez de algumas perguntas: a fé tem um carácter só pessoal, individual? Diz respeito só à minha pessoa? Vivo a minha fé individualmente? Decerto, o acto de fé é eminentemente pessoal, o qual se realiza no íntimo mais profundo e marca uma mudança de direcção, uma conversão pessoal: é a minha existência que recebe uma mudança, uma orientação nova. Na Liturgia do Baptismo, no momento das promessas, o celebrante pede para manifestar a fé católica e formula três perguntas: Credes em Deus Todo-Poderoso? Credes em Jesus Cristo seu único Filho? Credes no Espírito Santo? Antigamente estas perguntas eram dirigidas pessoalmente a quantos deveriam receber o Baptismo, antes de os imergir três vezes na água. E também hoje a resposta é dada no singular: «Creio». Mas este meu crer não é o resultado de uma minha reflexão solitária, nem o produto de um meu pensamento, mas é fruto de uma relação, de um diálogo, no qual há um ouvir, um receber e um responder; é o comunicar com Jesus que me faz sair do meu «eu» fechado em mim mesmo para me abrir ao amor de Deus Pai. É como um renascimento no qual me descubro unido não só a Jesus mas também a todos os que caminharam e caminham na mesma senda; e este novo nascimento, que inicia com o Baptismo, continua por todo o percurso da existência. Não posso construir a minha fé pessoal num diálogo privado com Jesus, porque a fé me é doada por Deus através duma comunidade crente que é a Igreja e, desta maneira, me insere na multidão dos crentes numa comunhão que não é só sociológica, mas radicada no amor eterno de Deus, que em Si mesmo é comunhão do Pai, do Filho e do Espírito Santo, é Amor trinitário. A nossa fé só é deveras pessoal, se for também comunitária: só pode ser a minha fé, se viver e se mover no «nós» da Igreja, se for a nossa fé, a fé comum da única Igreja.
Aos domingos, durante a Santa Missa, recitando o «Credo», nós expressamo-nos em primeira pessoa, mas confessamos comunitariamente a única fé da Igreja. O «Credo» pronunciado singularmente une-se ao de um imenso coro no tempo e no espaço, no qual cada um contribui, por assim dizer, para uma polifonia concorde na fé. O Catecismo da Igreja Católica resume de modo claro: «“Crer” é um acto eclesial. A fé da Igreja precede, gera, apoia e nutre a nossa fé. A Igreja é a Mãe de todos os crentes. “Ninguém pode dizer que tem Deus como Pai se não tiver a Igreja como Mãe” [São Cipriano]» (n. 181). Portanto, a fé nasce na Igreja, conduz para ela e vive nela. É importante recordar isto.
No ínicio do acontecimento cristão, quando o Espírito Santo desce com poder sobre os discípulos, no dia de Pentecostes — como narram os Actos dos Apóstolos (cf. 2, 1-13) — a Igreja nascente recebe a força para actuar a missão que lhe foi confiada pelo Senhor ressuscitado: difundir o Evangelho em todos os cantos da terra, a boa nova do Reino de Deus, e, deste modo, guiar todos os homens para o encontro com Ele, para a fé que salva. Os Apóstolos superam todos os temores proclamando o que tinham ouvido, visto, experimentado pessoalmente com Jesus. Pelo poder do Espírito Santo, iniciam a falar línguas novas, anunciando abertamente o mistério do qual foram testemunhas. Depois nos Actos dos Apóstolos é-nos referido o grande discurso que Pedro pronuncia precisamente no dia de Pentecostes. Ele começa com um trecho do profeta Joel (3, 1-5), referindo-o a Jesus, e proclamando o núcleo central da fé cristã: Aquele que beneficiou todos, que foi reconhecido junto de Deus com prodígios e sinais importantes, foi pregado na cruz e morreu, mas Deus ressuscitou-o dos mortos, constituindo-o Senhor e Cristo. Com Ele entrámos na salvação definitiva anunciada pelos profetas e quem invocar o seu nome será salvo (cf. Act 2, 17-24). Ao ouvir estas palavras de Pedro, muitos se sentiram pessoalmente interpelados, arrependeram-se dos próprios pecados e fizeram-se baptizar, recebendo o dom do Espírito Santo (cf. Act 2, 37-41). Assim iniciou o caminho da Igreja, comunidade que transmite este anúncio no tempo e no espaço, comunidade que é o Povo de Deus fundado na nova aliança graças ao sangue de Cristo e cujos membros não pertencem a um particular grupo social ou étnico, mas são homens e mulheres provenientes de todas as nações e culturas. É um povo «católico», que fala línguas novas, universalmente aberto a acolher todos, além dos confins, abatendo todas as barreiras. Diz são Paulo: «Não há mais grego nem judeu, nem circunciso nem incircunciso, nem bárbaro nem cita, nem escravo nem livre, mas Cristo, que é tudo em todos» (Cl 3, 11).
Portanto, desde os primóridos a Igreja é o lugar da fé, da transmissão da fé, o lugar no qual, pelo Baptismo, nos imergimos no Mistério Pascal da Morte e da Ressurreição de Cristo, que nos liberta da prisão do pecado, nos doa a liberdade de filhos e nos introduz na comunhão com o Deus trinitário. Ao mesmo tempo, estamos imersos na comunhão com os outros irmãos e irmãs de fé, com o inteiro Corpo de Cristo, tirados do nosso isolamento. O Concílio Vaticano II recorda: «Deus quis salvar e santificar os homens não individualmente nem sem qualquer vínculo entre si, mas quis constituir com eles um povo, que O reconhecesse na verdade e O servisse fielmente» (Const. dogm. Lumen gentium, 9). Mencionando ainda a Liturgia do Baptismo vemos que na conclusão das promessas nas quais expressamos a renúncia ao mal e repetimos «creio» às verdades da fé, o celebrante declara: «Esta é a nossa fé, esta é a fé da Igreja que nos gloriamos de professar em Jesus Cristo nosso Senhor». A fé é virtude teologal, doada por Deus, mas transmitida pela Igreja ao longo da história. O próprio são Paulo, escrevendo aos Coríntios, afirma que lhes comunicou o Evangelho que por sua vez também ele tinha recebido (cf. 1 Cor 15, 3).
Há uma corrente ininterrupta de vida da Igreja, de anúncio da Palavra de Deus, de celebração dos Sacramentos, que chega até nós e à qual chamamos Tradição. Ela dá-nos a garantia de que cremos na mensagem originária de Cristo, transmitida pelos Apóstolos. O núcleo do anúncio primordial é o evento da Morte e Ressurreição do Senhor, do qual brota todo o património da fé. Diz o concílio: «A pregação apostólica, que está exposta de um modo especial nos livros inspirados, devia conservar-se até ao fim dos tempos, por uma sucessão contínua» (Const. dogm.Dei Verbum, 8). Deste modo, se a Sagrada Escritura contém a Palavra de Deus, a Tradição da Igreja a conserva-a e transmite-a fielmente, para que os homens de todas as épocas possam aceder aos seus imensos recursos e se enriqueçam com os seus tesouros de graça. Assim a Igreja «na sua doutrina, na sua vida e no seu culto transmite a todas as gerações tudo o que ela é, tudo o que ela acredita» (ibidem).
Enfim, gostaria de realçar que é na comunidade eclesial que a fé pessoal cresce e amadurece. É interessante observar como no Novo Testamento a palavra «santos» designa os cristãos no seu conjunto, mas certamente nem todos tinham as qualidades para ser declarados santos pela Igreja. Que se desejava então indicar com este termo? O facto de que os tinham e viviam a fé em Cristo ressuscitado foram chamados a tornar-se um ponto de referência para todos os outros, pondo-os assim em contacto com a Pessoa e com a Mensagem de Jesus, que revela a face do Deus vivo. E isto vale também para nós: um cristão que se deixa guiar e plasmar gradualmente pela fé da Igreja, não obstante as suas debilidades, os seus limites e dificuldades, torna-se como uma janela aberta à luz do Deus vivo, que recebe esta luz e a transmite ao mundo. O Beato João Paulo II na EncíclicaRedemptoris missio afirmava que «a missão renova a Igreja, revigora a fé e a identidade cristã, dá-lhe novo entusiasmo e novas motivações. É dando a fé que ela se fortalece!» (n. 2).
Portanto, a tendência hoje difundida a relegar a fé na esfera do privado contradiz a sua própria natureza. Precisamos de uma Igreja para confirmar a nossa fé e fazer experiência dos dons de Deus: a sua Palavra, os Sacramentos, o apoio da graça e o testemunho do amor. Assim o nosso «eu» no «nós» da Igreja poderá sentir-se, ao mesmo tempo, destinatário e protagonista de um evento que o supera: a experiência da comunhão com Deus, que funda a comunhão entre os homens. Num mundo no qual o individualismo parece regular as relações entre as pessoas, tornando-as cada vez mais frágeis, a fé chama-nos a ser Povo de Deus, a ser Igreja, portadores do amor e da comunhão de Deus por todo o género humano (cf. Const. past. Gaudium et spes, 1). Obrigado pela atenção.